"Uma narrativa está no reino do "e se...".
- E se eu escolhesse abrir a porta?
- E se ele sobrevivesse à guerra?
- E se o monstro fosse derrotado antes de chegar ao povoado?
- E se... "
(DOVAH, Mister. Enredos e Escolhas. Disponível em aqui).
Essa epígrafe é referência direta ao que fui convidado a assistir pelo Café, porque segundo ele eu iria gostar, que é a animação What If...?, da Marvel, em que são abordadas situações hipotéticas que poderiam mudar o curso dos enredos cinematográficos e canônicos.
A indicação, mais precisamente, era o episódio 4, que traz uma narrativa sobre o Doutor Estranho. Não sou conhecedor dos heróis, de seus arcos, tampouco elaboro teorias sobre suas realidades, mas Café sabia que o tema me agradaria e foi certeiro. Para tanto, citarei meus próprios projetos, Okanobi e Tesserato, para fazer um paralelo de gamedev (não briguem comigo, deixem eu aparecer um tico também :V )
1- A Narração: percebi a figura de um narrador onipotente, onipresente e onisciente chamado Vigia. O Vigia é uma consciência que tudo sabe e pode interferir, mas não deve, nem ao menos demonstra interesse. A abertura do episódio já revela que ele reconhece o mosaico de possibilidades que se desdobra a cada escolha feita pelas pessoas, portanto vida e morte, tragédias e sucessos nada mais são que consequências presentes ou ausentes em determinadas realidades.
Verificar possibilidades é, inclusive, uma referência de habilidade do protagonista, e é interessante como nessa possibilidade... não há possibilidade.
O que isso quer dizer? Bem... a história traz o conceito de Ponto Absoluto, um fato imutável, independentemente da realidade vivenciada. Portanto, uma nova chance apenas mudaria a oportunidade de concretização daquilo que ele tanto deseja evitar, levando-o a uma obsessão atemporal de conseguir isso.
O acesso às artes místicas abriram o leque de esperança em seu coração, mas os limites do Absoluto se apresentaram a ele assim que ele se deixou dominar pela própria possibilidade de sucesso. Quando deixou de dominar, consumiu a realidade e até a si mesmo (a semiótica do canibalismo de sua duplicata é excepcional nisso) e destruiu o universo, tornou-se irreconhecível e monstruoso para sua amada e fracassou mais uma vez.
2- O Vigia: não vou comentar sua importância no universo Marvel, mas sim a sua participação no episódio. O Vigia abre a narrativa, fala da teia de possibilidades infinitamente desdobrável e insere a personagem. Em determinado momento, o véu entre sua posição se rasga e eles interagem (primeiro sua presença é sentida pelo herói, depois há uma comunicação direta). Em meu primeiro projeto, Okanobi, apresento um narrador que se comunica com o protagonista, Kardias. Ao longo do jogo, o Narrador (até então sem nome) é amaldiçoado e "encarna" no mundo de Kardias, fazendo parte da equipe, perdendo seu posto de onisciência, limitando-se a um invólucro carnal (e passa a ter um nome). A figura do "que tudo sabe e por alcançar" é uma incrível possibilidade de posicionar o espectador em relação ao que está sendo jogado/visto. Ele é íntimo e parece estar no mesmo plano da pessoa humana, mas não está, e por fim, ao se manifestar diretamente no universo observado, apresenta-se como um ser transitivo. Narrativas em que o protagonista relata sua própria experiência também podem se enquadrar aqui, já que ele "está ao seu lado" e também "está lá", sendo dois em um.
3- O Ponto Absoluto: o imutável dentro de todas as possibilidades. A mudança na realidade só faz mudar a forma como a mulher morre, mas ela sempre morre, inclusive na realidade em que o herói alcança sua meta de acumular poderes e ali teria a solução de seu conflito. Sempre vai acontecer, não importa como. Se não for hoje, será amanhã. Se não for de manhã, será à noite. Se não for pessoa A, será pessoa B, mas a dor é inevitável. Poderia citar aqui o jogo Life is Strange, em que a protagonista provoca alterações temporais a partir de suas ações e, ao tentar aliviar a dor da perda do pai de sua amiga, mantendo-o vivo, provoca a dor da "perda da vida em vida", na própria amiga. De qualquer forma haverá dor. Também poderia citar o filme "A morte te dá parabéns 2", em que uma experiência científica abre oportunidade para um loop temporal e uma mulher sempre acordar no dia do seu aniversário para morrer no final desse dia e acordar novamente e reviver tudo até que encontre uma forma de quebrar o ciclo. Ocorre que, na realidade original, a personagem sofria a perda da mãe e vivia um relacionamento feliz, mas nessa realidade alternativa, a mãe está viva e seu namorado namora uma de suas colegas de sororidade. A escolha entre voltar e perder a mãe novamente é dolorosa e a tensão do diálogo e da despedida mexeram muito comigo, mas esse papo emocional fica pra depois.
4- Fazer tudo diferente: poderia dizer que esse é o mote do episódio, já que Doutor Estranho refaz e refaz e refaz todo o percurso para encontrar uma brecha para a salvação, porém o risco de encontrar essa brecha poderia colapsar (e assim ocorre) toda uma realidade, já que as consequências de seus atos fazem parte essencial essa realidade, logo mudar uma ação que deletaria essas consequências e retroagiria com novas linhas temporais levaria ao fim toda uma possibilidade já estabelecida. Tentei fazer algo semelhante no projeto da BraveJam de 2020, Tesserato, em que tratei de como um cientista explora uma nova dimensão para tentar reaver seu irmão, Kardias (o mesmo do jogo já citado), já falecido. Moacir, o cientista, então se envolve na experiência e encontra momentos essenciais de quando foi ausente com seu irmãozinho e, se fosse possível, faria tudo diferente para mudar seu trágico destino. Então, o jogador deve escolher esses momentos e tentar cumprir a missão para restaurar aquela possibilidade. O sucesso e o fracasso mudam os finais do jogo e somente um único final é o verdadeiro.
E se...? E se...? E se...?
A nossa criatividade é feita disso diariamente, mas aqui tomamos uma decisão para concretizar algo. E o que ocorre com a outra decisão?
5- Gato de Schrödinger - na narrativa de What if...? há um momento em que a Anciã, tentando impedir que o herói levasse adiante seu plano, quebra-o em dois, fazendo com que uma versão alternativa sua, capaz de decidir não aderir ao plano destrutivo, coexistisse no mesmo universo. Isso criou um Paradoxo (já que os dois seres são excludentes de si próprios) e seu encontro seria aniquilador. Imediatamente lembrei do Gato de Schrödinger, uma experiência mental que acolhe a ideia de um gato estar vivo e morto ao mesmo tempo em universos diferentes. Eu sinceramente espero que minha outra versão tenha feito escolhas melhores.
6- Absorção de Arquétipos e Hermetismo: dois outros aspectos que me vieram à mente durante o episódio foi o momento em que o herói "devora" entidades forçadamente para absorver seus poderes e como ele observa símbolos capazes de influencia no mundo. Poderia considerar essa cena uma metáfora para a absorção de arquétipos mentais e mimese de comportamento. Além do mais, não consigo dissociar Doutor Estranho das Leis Herméticas e do próprio Hermes Trimegistro... até porque eles citam Cagliostro.
Enfim, achei lindo! Achei hinchable!
7- A disposição de informações: é fantástica a forma como o enredo apresenta muitas informações em pouco espaço. Fala-se em séculos e o episódio tem trinta minutos. Como se faz isso? Apresentando o que importa. Faz algum tempo, postei sobre o livro do Omar (aqui) e como no conto "Nictofobia" a velocidade é explorada por frases curtas que dão ideia de aceleração, arritmia e desordem. O mesmo é feito nas sequências do episódio aqui. As mortes de Christine e as frustrações do herói, bem como seus múltiplos consumos de entidades e o passar do tempo são sucessivamente representadas por flashes de acontecimentos específicos. Um dos maiores problemas de projetos de jogos digitais independentes é trazer essa sucessiva sequência de informações importantes. Fale o essencial para manter o espectador na linha de atenção. Mude a tonalidade da tela para representar muitos dias passando, faça jogo com luz e sombra, porque essas são as roupas do tempo (seria o infinito luz estática?...). Já parou para pensar que cenários sombrios parecem segurar o tempo, o que os torna mais sombrios?
8- Diálogos: assim como a disposição de elementos visuais, estão os elementos textuais verbais. Diálogos merecem destaque e atenção sua. Ponha na boca de suas personagens o que é interessante e não o que é trivial. Além de selecionar palavras de impacto que provoque rebuliço no receptor. O diálogo sobre amor, glória e morte no episódio é fantástico. "A morte faz parte do plano" é tão, tão, tão significativo que não precisa de um tratado explicando o porquê disso. A animação conta a história com palavras e com imagens. Fale com palavras, mas diga com tudo o que puder usar.
E então... quem é você na outra dimensão?
C ya.
Sobre o Gato de Schrödinger, meu gato no jogo do Marcos Beck (GNOSYS - aliás cadê SR. BECK???) - voltando, lá o meu gato se chama "Dovinha" mas eu não sei se ele está vio ou morto, por que eu sai de casa sem alimentar ele...